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domingo, 30 de agosto de 2009

Um livro divertidíssimo(adoro superlativos!), que vai das coisas comuns, às mais inusitadas do cotidiano alheio. Que é exatamente a filha mais nova, mais arteira, descontraída e sem papas na língua da nossa literatura: a crônica.
Tempo de Descabelar & Outras Crônicas Cabeludas, é um livro bem deste jeito. Rita Espeschit mostra a verdade nua e crua de uma forma irreverente, e às vezes até triste, como aquela nossa vizinha que sempre vê além de tudo, que nos incomoda por falar demais, e - pior ainda - a verdade.
Como bônus vou deixar um dos textos de que gostei muito.



Dos males, o menor


Prenderam os dois menores que picharam a Serraria Souza Pinto. Tinha lá a sigla deles no jornal: GLS, ou SHT, ou CPF, ou FHC, ou coisa que o valha, não lembro. Pegos sem a boca na botija, já que pichador que se preze sempre deixa a boca a uma distância prudente de botijas. Pelo que entendi no jornal, foi algo mais ou menos assim: os policiais saíram perguntando para os pichadores habitués, até chegarem os ditos cujos XYH ou ICMS ou ONU ou algo parecido.
Enquanto me perguntava sobre o porquê de tamanha atenção ao casa específico da Serraria(porque é um centro de cultura? porque é histórico? porque é chique?), fiquei me enternecendo com o perfil dos garotos que foi pintado(pichado?) na matéria.
BHC(vamos chamá-lo assim) de 15 anos, é mirradinho, sai de casa às dez da noite e vai até de madrugada pichando furuiosamente tudo o que vê pela frente. Passa as demias e insípidas horas do dia sonhando com a calada da noite, único momento de sua vida que realmente interesa.
IPTU, ignoro a idade, tem mãe empregada doméstica, vende a alma mas não fica sem a sua latinha de tinta. Era líder de uma gangue de pichadores, agora é membro de outra. Diz que pichou, sim. E que vai continuar pichando. Que nem pensava em eleger como alvo a Serraria naquele dia. Mas, quando viu o vigia dormindo em pé, igual uma estaca (acho que foi esse o termo que ele usou), não resistiu.
Me perdoem os leitores de muros recém-pintados, me perdoem também os politicamente corretos, mas não posso deixar de sentir uma irresistível simpatia pelos pichadores. Não que aprecie o resultado de sua arte: acho horroroso. Abominável. Prefiro mil vezes o descanso de uma superfície monocromática, desde que não rosa-choque ou outras escolhas piores do que as piores pichações - mas não contra os pichadores.
Por que simpatizo com os pichadores? Porque acho que, dos males, o menor. Tem gente que faz poluição visual no atacado e ninguém dá a mínima. Pegam é no pé de quem atua no varejo. Do mesmo jeito que a gente lota as cadeias de ladrões-pé-de-chinelo, enquanto os tubarões nadam nas águas tranqüilas do poder ou arredores.
Outdoor pode? Ônibus lambuzado de comerciais em todos os centímetros disponíveis pode? Anúncio luminoso em tamanho-família, piscando dentro da sala de quem mora por perto pode? Placa escandalosa em porta de loja, pode? E oficina mecânica pintada de laranja-cheguei ou verde-abacate em tinta óleo brilhante? Se tiver dinheiro para pagar a licença, se poluir legalmente, aí pode. Poluição visual de pobre é crime. De rico, é "atividade econômica".
Eu iria além: se os pichadores são obrigados a lavar sua pichações (o que não é ruim, e desconfio até que faça parte da diversão deles), eu defenderia que muito arquiteto que anda solto por aí fosse obrigado a desmanchar suas marmotas, pedra por pedra. Questão de justiça estética.
Os pichadores, pelo menos, são poluídores com ideologia. Picham porque querem protestar, sabendo ou não disso, sabendo ou não contra o quê. Picham porque estão numa idade em que ainda não se deixaram esmagar pelo peso do conformismo, ainda têm esperanças de ser alguém individualizado nesse mundo uniformizado. Porque, tendo nascido sem direito à cidadania (já que cidadania é privilégio de quem tem renda familiar acima de N salários mínimos), essa moçada vive a idade da esperança, esperança de não ter que passar o resto da vida dizendo "sim senhor", "como desejar, meu amo e senhor".
Eu admiro os jovens que não abaixaram a cabeça precocemente. É um direito que lhes assiste, o da revolta juvenil. Mesmo que transitória, mesmo que com armas tão ingênuas como a pichação. Que, admitamos, é muito mais interessante do que a revolta de um adolescente neonazista, de um jovem classe média que ateia fogo em índios ou um garoto barra-pesada que fuma crack e sai matando quem aparece pela frente. Dos males, portanto, o menor.



Rita Espeschit